sexta-feira, 2 de abril de 2010

Apêndice de Os Demônios de Loudun - Livro de Aldous Huxley

Caros leitores, peço a vocês muita cautela ao ler em especial este texto, este apêndice de Huxley, pois é de uma profundeza e tema bastante incomuns que nos costumam chocar ou surpreender. Peço também que aprendam a serem críticos com tudo o que se relacionarem, sempre aceitando o contato com um novo conhecimento, mas com o bom-senso como pente fino sendo passado mais de uma vez. Existem mistérios dentro do existir que têm que ser cautelosamente analisados antes de serem introduzidos a nossa gama de verdades, se é que era para existir tal distinção. Enfim, é com apreço que peço que cuidem bem de vocês mesmos tendo cautela com a construção do seu próprio ser.


Apêndice de Os Demônios de Loudun


Sem a compreensão do desejo profundo que têm os seres humanos de se autotranscenderem, a relutância natural que experimentam em trilhar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, e a conseqüente procura de uma falsa libertação, abaixo ou só de um lado de sua personalidade, não podemos entender a época em que vivemos, ou mesmo a história em geral, a vida como foi vivida no passado e como o é em nossos dias. Por essa razão, proponho discutirmos alguns dos mais comuns sucedâneos da Graça, por meio dos quais. Homens e mulheres têm tentado escapar da torturante consciência de serem apenas eles mesmos.

Atualmente, na França, existe um comerciante de bebidas alcoólicas para cada cem habitantes. Nos Estados Unidos, há provavelmente pelo menos um milhão de alcoólatras inveterados, além de um número bem maior de beberrões contumazes, cuja doença ainda não se tornou fatal. No que se refere ao consumo de inebriantes no passado, não temos dados estatísticos precisos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutões, durante toda a Idade Média e no início da época moderna, o consumo do álcool era talvez maior do que é hoje. Enquanto tomamos chá, café ou soda, nossos ancestrais se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, séculos depois, com gim, conhaque e usquebaugh. Beber água regularmente era uma penitência imposta aos malfeitores, ou considerada pelos religiosos, juntamente com o vegetarianismo ocasional, como uma mortificação muito severa. Não tomar inebriantes era uma excentricidade bastante marcante, a ponto de despertar comentários e apelidos depreciativos. Daí sobrenomes como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater.

O álcool é apenas uma das muitas drogas utilizadas pelos seres humanos como meio de libertação para o eu insulado. Entre os narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos, não existe um cujas propriedades não sejam conhecidas desde tempos imemoriais. Pesquisas modernas nos deram um bom número de novos sintéticos, mas, no que se refere aos venenos naturais, simplesmente desenvolveram-se métodos mais aperfeiçoados de extração, concentração e nova composição dos elementos já existentes. Do ópio ao curare, do cânhamo indiano à cocaína dos Andes e ao agárico siberiano, todas as plantas, arbustos e fungos capazes de entorpecer, excitar ou provocar visões, já tinham sido descobertos e utilizados de forma sistemática, O fato é significativamente estranho; pois parece provar que sempre, e em todos os lugares, os seres humanos sentiram a precariedade absoluta de suas existências pessoais, a miséria de serem apenas o seu ser insulado, e não outra coisa maior, alguma coisa, nas palavras de Wordsworth, “far more deeply interfused” (“Muito mais profundamente entrelaçada.”) . Explorando o mundo à sua volta, o homem primitivo “experimentou todas as coisas que o cercavam, e se fixou no bem”. No que se refere à autopreservação, o bem era cada fruto e folha comestíveis, cada semente, raiz e noz salubres. Mas, em outro contexto — o da insatisfação pessoal e do desejo de autotranscendência —, o bem era tudo aquilo contido na natureza capaz de transformar a consciência individual. As mudanças provocadas pelas drogas podem ser manifestamente maléficas, podem causar mal-estar no momento e vício no futuro, assim como degeneração e morte prematura. Nada disso importa. Só o que interessa é a consciência, pelo menos por alguns momentos, por uma ou duas horas que seja, de ser alguém, ou, na maioria dos casos, outra coisa que não o ser insulado. “Eu vivo, ou por outra, não eu, mas o vinho, o ópio, a mescalina e o haxixe vivem em mim”. Atravessar os limites do eu insulado representa uma tal libertação, que mesmo quando a autotranscendência acarreta náuseas que levam ao delírio, paralisias que levam ao delírio, paralisias que levam à alucinação e ao estado de coma, a experiência com drogas foi sempre considerada pelos primitivos, e mesmo pelos civilizados, intrinsecamente divina. Êxtases provocados por inebriantes constituem ainda uma parte essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios. Foi também, conforme documentos que se conservaram, outra parte não menos essencial da religião dos celtas, dos teutões, dos gregos, dos povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. A idéia não se reduz a que a “cerveja justifica melhor que Milton os objetivos de Deus em relação aos homens”. A cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabazios era o nome divino que se dava à alienação sentida sob o efeito da cerveja. Mais ao sul, Dionísio era, entre outras coisas, a concretização sobrenatural dos efeitos psicofísicos provocados pelo excesso de vinho. Na mitologia dos Vedas, Indra era o deus de um entorpecente chamado Soma, hoje em dia desconhecido. Herói exterminador de dragões, Indra era a projeção do estranho e glorioso não-eu experimentado pelo intoxicado. Identificado com a droga, ele se torna, como Soma-Indra, a fonte da imortalidade, o mediador entre o humano e o divino.

Nos dias de hoje, a cerveja e os demais tóxicos, atalhos para a autotranscendência, não são mais adorados como deuses. Houve uma mudança na teoria, mas não na prática; muitos milhões de homens e mulheres civilizados continuam a prestar sua devoção, não ao Espírito libertador e transfigurador, mas ao álcool, ao haxixe, ao ópio e seus derivados, aos barbitúricos e outros produtos sintéticos, acrescentados ao velho catálogo de venenos capazes de provocar a autotranscendência. Em cada caso, é claro, o que parece um deus é na verdade um demônio, o que simula liberação é de fato escravidão. A autotranscendência é invariavelmente descendente, no sentido do subumano, da degradação pessoal.

Do mesmo modo que o uso de inebriantes, a sexualidade primária, praticada por puro prazer e afastada do amor, foi outrora um deus, adorado não só como princípio de fecundidade, mas como manifestação do Não-Ser absoluto, imanente em todo ser humano. Teoricamente, a sexualidade primária há muito deixou de ser um deus. Mas, na prática, ainda pode vangloriar-se de incontável número de adeptos.

Existe uma sexualidade primária que é inocente, e outra que é moral e esteticamente sórdida. D. H. Lawrence escreveu de maneira encantadora sobre a primeira; Jean Genet, com uma força terrível e detalhadamente, sobre a segunda. A sexualidade do Éden e a sexualidade do esgoto — ambas têm o poder de levar o indivíduo além dos limites de seu eu insulado. Mas a segunda (como tristemente se deduz) leva aqueles que com ela pactuam ao mais baixo nível de subumanidade, desperta a consciência e deixa uma lembrança mais total de alienação do que a primeira. Eis aí, para todos aqueles que sentem necessidade de escapar de sua identidade aprisionada, a constante atração da libertinagem e de equivalentes exóticos da libertinagem, tais como os descritos no decorrer desta narrativa.

Na maioria das sociedades civilizadas, a opinião pública condena a depravação e o vício das drogas como prejudicais do ponto de vista ético. E à reprovação moral são acrescentados o desencorajamento fiscal e a repressão legal. O álcool é altamente taxado, a venda de narcóticos é proibida em toda parte, e certas práticas sexuais são consideradas criminosas. Mas quando passamos do vício dos entorpecentes e da sexualidade primária ao terceiro meio de obter a auto- transcendência descendente, encontramos da parte dos moralistas e legisladores uma atitude bastante indulgente, isso parece ainda mais espantoso quando se pensa que o delírio das multidões, como podemos denominar, é muito mais perigoso à ordem social, constitui uma ameaça muito mais dramática a essa tênue crosta de decência, razão e tolerância mútua que constitui uma civilização, do que a bebida ou a libertinagem. Na verdade, um hábito generalizado e já longamente arraigado de entrega total ao prazer pode resultar, como argumentou J. H. Unwin (D. Unwin, Sex and culture – Londres, 1934), na redução do nível de energia de uma sociedade inteira, tornando-a, por conseguinte, incapaz de atingir ou manter um alto nível de civilização. Do mesmo modo, o vício das drogas, quando suficientemente difundido, pode diminuir a eficiência econômica, política e militar da sociedade em que prevalece. Nos séculos XVIII e XIX, o álcool era a arma secreta dos traficantes de escravos europeus; a heroína, a dos militares japoneses no século XX. Embriagado, o negro era uma presa fácil. Quanto ao chinês viciado, podia-se estar seguro de que não causaria problemas ao conquistador. Mas esses casos são excepcionais. Deixada a seu arbítrio, uma sociedade geralmente tende a chegar a um modus vivendi com seu veneno favorito. O entorpecente é um parasita no organismo político, mas um parasita que seu hospedeiro (falando num sentido metafórico) tem forças suficientes e bastante bom senso para manter sob controle. E o mesmo se aplica à sexualidade. Nenhuma sociedade que baseasse suas práticas sexuais nas teorias do marquês de Sade poderia sobreviver, e, na verdade, nenhuma sociedade nem sequer se aproximou de tais práticas. Até mesmo os mais liberais entre os paraísos polinésios possuem regras e regulamentos, imperativos categóricos e mandamentos. Contra os excessos da sexualidade, assim como do vício das drogas, as sociedades parecem saber se proteger com bastante sucesso. As defesas contra os delírios das multidões e suas conseqüências desastrosas parecem ser, na maioria das vezes, muito menos apropriadas. Os moralistas profissionais que investem contra a embriaguez são estranhamente reticentes quanto ao igualmente repugnante vício da intoxicação das massas — a autotranscendência descendente no sentido da subumanidade, provocada pelo processo de se reunir em multidão.

“Onde dois ou três se reúnem em Meu nome, lá estou entre eles.” Entre duzentos ou trezentos, a presença de Deus se torna mais problemática. E quando os números atingem o milhar, ou vários milhares, a probabilidade de Deus estar lá, na consciência de cada indivíduo, declina até o ponto de se extinguir por completo. Porque tal é a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão é automaticamente auto-excitante): onde dois ou três mil se reúnem, há ausência não somente da divindade, mas mesmo de traços mínimos de humanidade. O fato de ser um na multidão liberta o homem o da consciência de ser um eu insulado, e o leva a um estágio intrapessoal, onde não existe responsabilidade, bem, ou mal, necessidade de pensamento, julgamento ou discernimento — somente um sentimento vago de estar junto, o sentimento de uma excitação partilhada, de uma alienação coletiva. E a alienação é mais prolongada e menos cansativa do que a provocada pela libertinagem: a manhã seguinte, menos deprimente do que a que se segue à auto-intoxicação pelo álcool ou morfina. Além disso, o delírio da multidão pode ser experimentado não somente sem sentimento de culpa, mas até, na maioria dos casos, com o positivo esplendor da consciência limpa. Porque, longe de condenar a autotranscendência descendente, provocada pela intoxicação em meio à massa, os líderes da Igreja e do Estado encorajam-na ativamente, sempre que pode servir a seus próprios fins. Individualmente, assim como nos grupos coordenados e com um objetivo comum que constituem a sociedade, homens e mulheres demonstram certa capacidade para o pensamento racional e para o livre-arbítrio, à luz dos princípios morais. Reunidos em meio à multidão, os mesmos homens e mulheres comportam-se como se não possuíssem razão nem livre-arbítrio. A intoxicação provocada pela multidão os reduz a uma condição infrapessoal e de irresponsabilidade anti-social. Drogados pelo veneno misterioso que toda multidão excitada segrega, caem em um estado de alta sugestionabilidade, semelhante ao que se segue a uma injeção de sódio amital, ou à indução, seja por que meio for, de um leve transe hipnótico. Enquanto estiverem nesse estado, acreditarão em qualquer bobagem que lhes gritarem, e responderão a qualquer ordem ou comando que lhes derem, por mais criminoso, louco ou sem sentido que seja. Para os indivíduos sob a influência do veneno segregado pelas massas, “tudo o que eu repetir três vezes é verdade” (Referência à conhecida sentença encontrada no livro A caça ao “snark”, do escritor inglês Lewis Carroll) — e o que eu disser trezentas vezes é a revelação, é a palavra de Deus por inspiração direta. Por essa razão, os homens que detêm a autoridade — os padres e os dirigentes do povo — nunca proclamaram virtualmente a imoralidade desse tipo de autotranscendência descendente. Na verdade, os delírios de massas provocados pelos membros da oposição, em nome de princípios heréticos, foram sempre denunciados pelos que estão no poder. Mas aqueles provocados por agentes governamentais, em nome da ortodoxia, são um assunto totalmente diferente. Todas as vezes em que pode servir aos interesses dos homens que controlam o Estado e a Igreja, a autotranscendência horizontal pela intoxicação das massas é considerada legítima e altamente desejável. Romarias e reuniões políticas, manifestações religiosas e desfiles patrióticos — essas coisas são eticamente corretas se se tratarem de “nossas” romarias, “nossas” reuniões, manifestações ou desfiles. O fato de a maioria dos que tomam parte nessas atividades ficarem temporariamente desumanizados pelo veneno coletivo, é de pouca importância, comparado ao fato de que sua desumanização pode ser usada para consolidar os poderes políticos e religiosos dominantes.

Quando o delírio das massas é explorado em benefício do governo e das igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem seus governados pela autotranscendência descendente, para em primeiro lugar distraí-los, e em seguida colocá-los num estado de não-individualidade altamente sugestionável. Cerimônias políticas e religiosas são bem recebidas pelas massas, como oportunidades de se embriagarem com o veneno das multidões, e por seus governantes, como ocasiões para implantar idéias em mentes que cessaram momentaneamente de ter a capacidade de raciocínio ou de livre- arbítrio.

O sintoma derradeiro de intoxicação das massas é uma violência maníaca. Exemplos de delírios de multidões que culminam em destruição gratuita, em brutal automutilação, em selvageria fratricida sem objetivo e contra os interesses elementares de todos os envolvidos, são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos, e — um pouco menos freqüentemente, mas com desoladora regularidade — nas histórias mesmo das mais adiantadas civilizações. A não ser quando desejam liquidar uma minoria impopular, os representantes do Estado e da Igreja são prudentes em não criar um furor que possa escapar de seu controle. Tais escrúpulos não constrangem o líder revolucionário, que odeia o status quo e só tem um desejo: criar um caos sobre o qual possa — quando tomar o poder — impor um novo tipo de ordem. Quando o revolucionário explora essa ânsia de autotranscendência descendente, vai até o mais frenético e demoníaco limite. Para homens e mulheres desgostosos de serem seres insulados, e cansados das responsabilidades que retêm como membros de um grupo humano com determinados objetivos, ele oferece oportunidades animadoras de “livrar-se disso tudo” em desfiles, manifestações e reuniões públicas. Os departamentos de organizações políticas são grupos objetivos. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que ela segrega despersonaliza seus membros, a ponto de começar a agir com uma violência selvagem, da qual em seu estado normal seriam inteiramente incapazes. O revolucionário encoraja seus seguidores a manifestar esse derradeiro e pior sintoma de intoxicação das massas, e então passa a dirigir sua fúria contra os inimigos, os que detêm o poder econômico, político e religioso.

Nos últimos quarenta anos, as técnicas utilizadas na exploração do desejo do homem em relação a essa mais perigosa forma de autotranscendência descendente alcançaram um extremo de perfeição jamais visto na história. Para começar, existem mais pessoas por quilômetro quadrado do que em qualquer outra época, e os meios de transporte para arrebanhar grandes grupos e, percorrendo enormes distâncias, concentrá-los em um único edifício ou condomínio, são muito mais eficientes que no passado. Enquanto isso, mecanismos novos e outrora inimagináveis para animar as multidões foram inventados. Existe o rádio, que ampliou enormemente o alcance da voz estridente do demagogo. Há o alto-falante, que amplifica e repete incessantemente a música violenta que expressa os ódios de classe e o nacionalismo agressivo. A câmera (da qual já se disse ingenuamente que “não pode mentir”) e seus frutos: o cinema e a televisão. Os três tornaram a concretização de fantasias tendenciosas absurdamente fácil. E há finalmente a maior de nossas invenções sociais, a educação gratuita e compulsória. Todos sabem ler, e estão portanto à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, que possuem as fábricas de papel, de máquinas de linotipo e de prensas rotativas. Junte uma turba de homens e mulheres previamente condicionados pela leitura diária de jornais; submeta-os a uma orquestra com amplificadores, luzes brilhantes e o discurso de um demagogo que (como acontece com todos os demagogos) é ao mesmo tempo explorador e vítima da intoxicação das massas, e em pouco tempo você pode reduzi-los a um estado de subumanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos seres humanos em tolos, maníacos e criminosos.

Na Rússia comunista, na Itália fascista e na Alemanha nazista, os exploradores da tendência fatal da humanidade para a intoxicação das massas têm seguido o mesmo método. Quando em oposição revolucionária, encorajaram a multidão sob sua influência a tornar-se destrutivamente violenta. Mais tarde, quando tomam o poder, só permitem que a intoxicação das massas se expanda livremente em relação a estrangeiros e bodes expiatórios. Tendo alcançado um status quo que desejavam manter, passam então a controlar a descida até a subumanidade, conservando-a no ponto ideal aquém da agitação. Para esses neoconservadores, a intoxicação das massas tornou-se de valor inestimável como meio de aumentar a sugestionabilidade dos indivíduos, e assim torná-los mais dóceis às manifestações de autoritarismo. O melhor antídoto conhecido contra o pensamento livre é estar em uma multidão. Daí a repulsa total dos ditadores à “psicologia pura” e à vida particular. “Intelectuais do mundo, uni-vos! Não tendes nada a perder, senão vossos cérebros.”

Drogas, sexualidade primária e intoxicação das massas — são estes os três caminhos mais conhecidos para a autotranscendência descendente. Existem muitos outros, não tão trilhados quanto essas estradas em declive, mas que conduzem ao mesmo objetivo de degradação pessoal. Basta pensar, por exemplo, no movimento rítmico. Nas religiões primitivas, o movimento rítmico prolongado é freqüentemente usado com a finalidade de provocar um estado de êxtase impessoal e subumano. A mesma técnica para alcançar o mesmo fim tem sido utilizada por muitos povos civilizados — pelos gregos, por exemplo, pelos hindus, por muitas seitas dervixes no mundo islâmico, e por seitas cristãs tais como as dos shakers e dos holy rollers. Em todos esses casos, o movimento rítmico, prolongado e repetitivo, é uma forma de ritual praticada deliberadamente, e que visa uma autotranscendência descendente. A história também registra muitas explosões esporádicas de danças agitadas, involuntárias e incontroláveis, balanços e meneios de cabeça. Essas epidemias que se denominam ora tarantismo, ora dança de São Vito, têm ocorrido geralmente em tempos difíceis que sucedem a guerras, pestes e fome, e são mais comuns onde a malária é endêmica. O objetivo inconsciente dos homens e mulheres que se entregam a essas loucuras coletivas é o mesmo que perseguem os membros das seitas que têm a dança como rito religioso — ou seja, o de fugir do eu isolado por meio de um estado de irresponsabilidade, sem culpas passadas ou anseios futuros, mas apenas o presente, com a feliz sensação de ser outro.

Intimamente associado com o rito produtor de êxtase do movimento rítmico, encontra-se o rito produtor do som ritmado. A música é tão grandiosa quanto a natureza humana e tem alguma coisa a dizer ao homem em todos os aspectos de seu ser, do sentimental ao intelectual, do visceral ao espiritual. Em uma de suas diversas modalidades, a música é uma droga poderosa, estimulante ou narcotizante, mas os dois aspectos se excluem mutuamente. Nenhum homem, por mais civilizado que seja, pode ouvir durante muito tempo tambores africanos, ou cantos indianos, ou hinos patrióticos galeses, e manter intacta sua personalidade crítica e consciente. Seria interessante juntar um grupo dos mais eminentes filósofos das melhores universidades, trancá-los com dervixes marroquinos ou voduístas haitianos num quarto aquecido e medir, com um cronômetro, a força de sua resistência psicológica aos feitos do som ritmado. Os positivistas lógicos resistiriam mais que os idealistas subjetivos? Provariam os marxistas serem mais fortes que os tomistas ou vedantistas? Que fascinante e fértil campo de experiência! Por enquanto, o que podemos prever é que, se expostos o suficiente aos ritmos monótonos e aos cantos, cada um de nossos filósofos terminaria por dar pulos e gritos, juntamente com os selvagens.

Os movimentos rítmicos e o som ritmado são geralmente por assim dizer, acrescentados à intoxicação das massas. Mas existem também caminhos privados que podem ser tomados pelo viajante solitário, que não gosta de multidões ou não tem fé suficiente nos princípios, instituições e pessoas em torno dos quais as multidões se reúnem. Um desses caminhos particulares é o do mantram, que Cristo denominou “vã repetição”. Nos cultos religiosos públicos, a “vã repetição” é quase sempre associada ao som ritmado. As litanias e similares são cantadas, ou pelo menos entoadas. E com música que obtêm seus efeitos semi-hipnóticos. A “vã repetição”, quando praticada na privacidade, age sobre a mente não devido à sua associação com o som rítmico (pois funciona mesmo quando as palavras são apenas imaginadas), mas por meio do poder de concentração e da memória. A repetição constante da mesma palavra ou frase leva freqüentemente a um estado de percepção luminosa, ou mesmo a um profundo transe. Uma vez induzido, o transe pode ser desfrutado em si mesmo, com uma deliciosa sensação de infrapessoal “não-eu”, ou então utilizado deliberadamente com o objetivo de melhorar a conduta pessoal pela auto-sugestão, e preparar o caminho para a realização máxima de autotranscendência ascendente. Da segunda possibilidade, falaremos mais tarde em outro trecho. No momento, estamos preocupados com a “vã repetição” como um caminho descendente que leva à completa alienação intrapessoal.

Devemos agora considerar um método estritamente fisiológico para fugir ao eu insulado: o caminho da penitência corporal. A violência destrutiva, sintoma final da intoxicação das massas, não é invariavelmente dirigida para o exterior. A história da religião está repleta de casos sinistros de autoflagelações, automutilações, autocastrações e até suicídios coletivos. Esses atos são conseqüência do delírio da multidão, e são praticados em estados de exaltação. Muito diferente é a penitência corporal praticada privadamente, e de cabeça fria. Nesse caso, o ato de flagelação deve-se a uma determinação da vontade pessoal; mas sua conseqüência (ao menos em alguns casos) é uma transformação temporária da personalidade insulada em alguma coisa diferente. Essa outra coisa é a consciência em si mesma, intensa demais por ser única, da dor física. A pessoa que se autoflagela se identifica com sua dor, e ao se tornar apenas a percepção de seu corpo sofredor livra-se daquele sentimento de culpa ligado ao passado, e da frustração daquela ansiedade obsessiva em relação ao futuro, que constituem uma grande parte do ego neurótico. Houve uma fuga de individualidade, uma passagem descendente para um estado de martírio puramente fisiológico. Mas a autoflagelação não precisa permanecer necessariamente nessa região de consciência. Como o homem que faz uso da “vã repetição” para superar-se a si mesmo, há uma possibilidade de se fazer uso da alienação temporária da individualidade como uma ponte, digamos, que leva ascensionalmente para a vida do espírito.

Isso levanta uma questão muito importante. Até que ponto, e em que circunstâncias, é possível a um homem usar o caminho descendente para atingir a autotranscendência espiritual? A primeira vista, tudo parece indicar que o caminho para baixo jamais poderia ser o caminho para cima. Mas, no domínio da existência, os problemas não são tão simples como o são no nosso bonito e bem-organizado mundo das palavras. Na vida real, um movimento descendente pode algumas vezes se tornar o início de um ascendente. Quando a concha do ego é partida e começa a surgir uma consciência subliminar e fisiológica do “não-eu” sob nossa personalidade aparente, acontece algumas vezes que captamos um lampejo, rápido mas apocalíptico, daquele “não-eu” (No original, “otherness”, “alteridade”) que é o Fundamento de todo o nosso ser. Enquanto permanecemos isolados em nossa identidade, não temos consciência dos diversos não-eus aos quais estamos ligados — o não-eu orgânico, o não-eu subconsciente, o não-eu coletivo do meio psíquico, no qual nossos pensamentos e sentimentos existem e o imanente e transcendente não-eu do Espírito. Qual que fuga, mesmo por um caminho descendente, para fora da individualidade insulada, torna possível uma percepção ao menos momentânea do não-eu em cada nível, que inclui o mais elevado. William James, em seu Varieties of religious experience, dá exemplos de “revelações anestésicas” que se seguem a inalações de gás hilariante. Teofanias semelhantes são algumas vezes experimentadas por alcoólatras, e existem talvez momentos, durante a intoxicação produzida por quase qualquer tipo de droga, em que a percepção de um não-eu, superior ao eu em processo de desintegração, torna-se possível por um breve lapso de tempo. Mas esses momentâneos surtos de revelação custam muito caro. Para os viciados em drogas, o momento de percepção espiritual (se surge real mente cede bem cedo lugar a um estupor subumano, uma exaltação ou uma alucinação, seguidas por terríveis ressacas, e a longo prazo, por um enfraquecimento permanente e fatal da saúde física e mental. Uma vez ou outra, uma única “revelação anestésica” pode agir, como qualquer outra manifestação da divindade, no sentido de estimular quem a experimenta a um esforço de autotransformação e autotranscendência ascendente. Mas, pelo fato de tal coisa poder eventualmente acontecer, não se justifica o emprego de métodos químicos de autotranscendência. Esse é um caminho descendente, e a maioria dos que o tomam atingirá um estado de degradação, onde períodos de êxtase subumano serão alternados por períodos de individualidade consciente tão miserável, que qualquer fuga, mesmo para o suicídio lento do vício das drogas, será preferível.

O que é verdade quanto às drogas, também o é, mutatis mutandis, quanto à sexualidade primária. O caminho leva para baixo, mas durante o percurso pode haver teofanias ocasionais. Os Deuses das Trevas, como os chamava Lawrence, podem mudar suas características e tornar-se reluzentes. Na Índia existe uma ioga tântrica, baseada em complicadas técnicas psicofisiológicas, cujo propósito é transformar a autotranscendência descendente da sexualidade primária em autotranscendência ascendente. No Ocidente, o equivalente que mais se aproximou dessas práticas tântricas foi a disciplina sexual imaginada por John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Comunidade de Oneida. Em Oneida, a sexualidade primária era não apenas civilizada com sucesso; era também tornada compatível e subordinada a uma forma de protestantismo, sinceramente pregada e firmemente praticada.

A intoxicação das massas desintegra o ego muito mais profundamente que a sexualidade primária. Suas exaltações, suas loucuras, sua sugestionabilidade elevada ao mais alto grau, só podem ser comparadas às intoxicações provocadas por drogas como o álcool, o haxixe e a heroína. Mas, mesmo a um componente de uma multidão excitada, pode ocorrer (em um estágio ainda inicial de autotranscendência descendente) uma revelação autêntica do não-eu que está acima da individualidade. Eis a razão por que algumas vezes podem ser benéficas as mais coribânticas reuniões visando despertar o fervor religioso (Ou seja, das mais violentas e exaltadas reuniões organizadas com esse fim.). Algum bem, tanto quanto um grande mal, podem também resultar do fato de que as pessoas, em meio à multidão, tendem a tornar-se excessivamente sugestionáveis. Enquanto se encontram nesse estado, são sujeitas a estímulos que continuam funcionando como ordens dadas a hipnotizados, mesmo depois que voltam a seu estado normal. Assim como o demagogo, o pregador e o ritualista desintegram o ego de seus ouvintes, reunindo-os em grupo e deixando-os sonados por meio do excesso de vã repetição e do som rítmico Então, ao contrário do demagogo, fazem sugestões, algumas das quais são autenticamente cristãs. Isso, se funciona, resulta em uma reintegração das individualidades destruídas num nível mais elevado. Pode haver também reintegrações de personalidade sob a influência de ordens pós-hipnóticas, transmitidas por políticos demagogos. Mas essas ordens são todas incitamento ao ódio, por um lado, e obediência cega e ilusão compensatória, por outro. Iniciada com uma dose maciça de veneno em meio a multidões, confirmada e orientada pela retórica de um maníaco, ao mesmo tempo um maquiavélico explorador da fraqueza dos outros homens, a catequização política resulta na criação de uma nova personalidade, pior que a antiga e muito mais perigosa, porque inteiramente devotada a um partido cujo objetivo primordial é liquidar seus oponentes.

Fiz uma distinção entre demagogos e religiosos, baseando-me no fato de os últimos poderem algumas vezes praticar o bem, enquanto os primeiros podem apenas, pela própria natureza das coisas, fazer o mal. Mas não imaginemos que os exploradores religiosos da intoxicação das massas estão inteiramente inocentes. Pelo contrário, foram os responsáveis, no passado, por males quase tão imensuráveis quanto os causados às suas vítimas (junto com as vítimas daquelas vítimas) pelos demagogos revolucionários de nossos dias. No decorrer das últimas seis ou sete gerações, o poder das organizações religiosas para fazer o mal diminuiu consideravelmente em todo o mundo ocidental. Isso se deve primeiramente ao incrível progresso tecnológico e à conseqüente procura pelas massas de ilusões compensatórias que parecem mais positivistas que metafísicas. Os demagogos oferecem tais ilusões pseudo-positivistas, enquanto as Igrejas não o fazem. Ao mesmo tempo em que a sedução das Igrejas declina, diminuem também sua influência, sua riqueza, seu poder político e, junto com tudo isso, sua capacidade para praticar o mal numa escala maior. As circunstâncias libertaram o sacerdote de certas tentações a que seus antecessores quase sempre não resistiam, em séculos passados. Fariam bem em afastar-se voluntariamente de tais tentações, que ainda persistem. Entre elas, destaca-se a tentação de obter poder pelo estímulo ao insaciável desejo humano de autotranscendência descendente. Produzir deliberadamente a intoxicação das massas — mesmo que em nome da religião e supostamente “para o bem” do intoxicado — não se justifica moralmente.

No que se refere à autotranscendência horizontal, pouco precisa ser dito — não porque o fenômeno não seja de importância (longe disso), mas por ser por demais óbvio para exigir análise, e por ocorrer com tanta freqüência que se torna difícil defini-lo em poucas palavras.

Para escapar dos horrores do eu insulado, a maior parte dos homens e mulheres escolhem, na maioria das vezes, não subir nem descer, mas escapar para os lados. Eles se identificam com uma causa maior que seus próprios interesses imediatos, mas que não os faz cair na degradação, e, quando é mais elevada, sem ultrapassar os níveis dos valores sociais correntes. Essa autotranscendência horizontal, ou quase horizontal, pode estar em qualquer coisa trivial como um hobby, ou valiosa como um casamento por amor. Pode ser produzida pela auto-identificação com qualquer atividade humana, desde gerir um negócio até fazer pesquisas sobre física nuclear, compor música ou colecionar selos, fazer campanhas políticas para educar crianças ou estudar os hábitos matinais dos pássaros. A autotranscendência horizontal é de grande importância. Sem ela, não haveria arte, ciência, lei, filosofia, nem, na verdade, civilização. E não haveria também guerra, odium theologicum ou ideologicum, nem constantes intolerâncias, nem perseguições. Esses grandes bens e imensos males são decorrentes da capacidade do homem para uma total e constante auto-identificação com uma idéia, um sentimento, uma causa. Como poderemos ter o bem sem o mal, uma civilização avançada sem o bombardeio de saturação, ou o extermínio de hereges políticos ou religiosos? A resposta é que não podemos possuir isso enquanto nossa autotranscendência permanecer apenas horizontal. Quando nos identificamos com uma idéia ou uma causa, estamos de fato adorando uma coisa comum, incompleta e provinciana — uma coisa que, embora nobre, é contudo demasiadamente humana. “O patriotismo”, como um grande patriota concluiu no dia de sua execução pelos inimigos de seu país, “não é suficiente”. Nem o socialismo, nem o comunismo, nem o capitalismo; nem a arte, a ciência, a ordem pública, nenhuma religião ou Igreja. Tudo isso é indispensável, mas nada disso é bastante. A civilização exige do indivíduo uma auto-identificação devotada às mais elevadas causas da humanidade. Mas, se essa auto-identificação com o que é humano não for acompanhada por um esforço consciente e congruente, visando a atingir a autotranscendência ascendente no sentido da vida universal do Espírito, os bens alcançados estarão sempre misturados a males que os contrabalançam. “Fazemos”, escreveu Pascal, “da verdade um ídolo; porque a verdade sem caridade não é Deus, mas Sua imagem e ídolo, a quem não devemos amar nem venerar.” E não é apenas errado adorar um ídolo; é também inconveniente. A adoração da verdade, separada do amor cristão — uma auto-identificação com a ciência não acompanhada da identificação com o Fundamento de todo o ser — resulta no tipo de situação com que, presentemente, nos defrontamos. Todo ídolo, por mais sublime que seja, transforma-se, com o tempo, num Moloch, faminto de sacrifício humano.