sexta-feira, 2 de abril de 2010

Apêndice de Os Demônios de Loudun - Livro de Aldous Huxley

Caros leitores, peço a vocês muita cautela ao ler em especial este texto, este apêndice de Huxley, pois é de uma profundeza e tema bastante incomuns que nos costumam chocar ou surpreender. Peço também que aprendam a serem críticos com tudo o que se relacionarem, sempre aceitando o contato com um novo conhecimento, mas com o bom-senso como pente fino sendo passado mais de uma vez. Existem mistérios dentro do existir que têm que ser cautelosamente analisados antes de serem introduzidos a nossa gama de verdades, se é que era para existir tal distinção. Enfim, é com apreço que peço que cuidem bem de vocês mesmos tendo cautela com a construção do seu próprio ser.


Apêndice de Os Demônios de Loudun


Sem a compreensão do desejo profundo que têm os seres humanos de se autotranscenderem, a relutância natural que experimentam em trilhar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, e a conseqüente procura de uma falsa libertação, abaixo ou só de um lado de sua personalidade, não podemos entender a época em que vivemos, ou mesmo a história em geral, a vida como foi vivida no passado e como o é em nossos dias. Por essa razão, proponho discutirmos alguns dos mais comuns sucedâneos da Graça, por meio dos quais. Homens e mulheres têm tentado escapar da torturante consciência de serem apenas eles mesmos.

Atualmente, na França, existe um comerciante de bebidas alcoólicas para cada cem habitantes. Nos Estados Unidos, há provavelmente pelo menos um milhão de alcoólatras inveterados, além de um número bem maior de beberrões contumazes, cuja doença ainda não se tornou fatal. No que se refere ao consumo de inebriantes no passado, não temos dados estatísticos precisos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutões, durante toda a Idade Média e no início da época moderna, o consumo do álcool era talvez maior do que é hoje. Enquanto tomamos chá, café ou soda, nossos ancestrais se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, séculos depois, com gim, conhaque e usquebaugh. Beber água regularmente era uma penitência imposta aos malfeitores, ou considerada pelos religiosos, juntamente com o vegetarianismo ocasional, como uma mortificação muito severa. Não tomar inebriantes era uma excentricidade bastante marcante, a ponto de despertar comentários e apelidos depreciativos. Daí sobrenomes como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater.

O álcool é apenas uma das muitas drogas utilizadas pelos seres humanos como meio de libertação para o eu insulado. Entre os narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos, não existe um cujas propriedades não sejam conhecidas desde tempos imemoriais. Pesquisas modernas nos deram um bom número de novos sintéticos, mas, no que se refere aos venenos naturais, simplesmente desenvolveram-se métodos mais aperfeiçoados de extração, concentração e nova composição dos elementos já existentes. Do ópio ao curare, do cânhamo indiano à cocaína dos Andes e ao agárico siberiano, todas as plantas, arbustos e fungos capazes de entorpecer, excitar ou provocar visões, já tinham sido descobertos e utilizados de forma sistemática, O fato é significativamente estranho; pois parece provar que sempre, e em todos os lugares, os seres humanos sentiram a precariedade absoluta de suas existências pessoais, a miséria de serem apenas o seu ser insulado, e não outra coisa maior, alguma coisa, nas palavras de Wordsworth, “far more deeply interfused” (“Muito mais profundamente entrelaçada.”) . Explorando o mundo à sua volta, o homem primitivo “experimentou todas as coisas que o cercavam, e se fixou no bem”. No que se refere à autopreservação, o bem era cada fruto e folha comestíveis, cada semente, raiz e noz salubres. Mas, em outro contexto — o da insatisfação pessoal e do desejo de autotranscendência —, o bem era tudo aquilo contido na natureza capaz de transformar a consciência individual. As mudanças provocadas pelas drogas podem ser manifestamente maléficas, podem causar mal-estar no momento e vício no futuro, assim como degeneração e morte prematura. Nada disso importa. Só o que interessa é a consciência, pelo menos por alguns momentos, por uma ou duas horas que seja, de ser alguém, ou, na maioria dos casos, outra coisa que não o ser insulado. “Eu vivo, ou por outra, não eu, mas o vinho, o ópio, a mescalina e o haxixe vivem em mim”. Atravessar os limites do eu insulado representa uma tal libertação, que mesmo quando a autotranscendência acarreta náuseas que levam ao delírio, paralisias que levam ao delírio, paralisias que levam à alucinação e ao estado de coma, a experiência com drogas foi sempre considerada pelos primitivos, e mesmo pelos civilizados, intrinsecamente divina. Êxtases provocados por inebriantes constituem ainda uma parte essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios. Foi também, conforme documentos que se conservaram, outra parte não menos essencial da religião dos celtas, dos teutões, dos gregos, dos povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. A idéia não se reduz a que a “cerveja justifica melhor que Milton os objetivos de Deus em relação aos homens”. A cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabazios era o nome divino que se dava à alienação sentida sob o efeito da cerveja. Mais ao sul, Dionísio era, entre outras coisas, a concretização sobrenatural dos efeitos psicofísicos provocados pelo excesso de vinho. Na mitologia dos Vedas, Indra era o deus de um entorpecente chamado Soma, hoje em dia desconhecido. Herói exterminador de dragões, Indra era a projeção do estranho e glorioso não-eu experimentado pelo intoxicado. Identificado com a droga, ele se torna, como Soma-Indra, a fonte da imortalidade, o mediador entre o humano e o divino.

Nos dias de hoje, a cerveja e os demais tóxicos, atalhos para a autotranscendência, não são mais adorados como deuses. Houve uma mudança na teoria, mas não na prática; muitos milhões de homens e mulheres civilizados continuam a prestar sua devoção, não ao Espírito libertador e transfigurador, mas ao álcool, ao haxixe, ao ópio e seus derivados, aos barbitúricos e outros produtos sintéticos, acrescentados ao velho catálogo de venenos capazes de provocar a autotranscendência. Em cada caso, é claro, o que parece um deus é na verdade um demônio, o que simula liberação é de fato escravidão. A autotranscendência é invariavelmente descendente, no sentido do subumano, da degradação pessoal.

Do mesmo modo que o uso de inebriantes, a sexualidade primária, praticada por puro prazer e afastada do amor, foi outrora um deus, adorado não só como princípio de fecundidade, mas como manifestação do Não-Ser absoluto, imanente em todo ser humano. Teoricamente, a sexualidade primária há muito deixou de ser um deus. Mas, na prática, ainda pode vangloriar-se de incontável número de adeptos.

Existe uma sexualidade primária que é inocente, e outra que é moral e esteticamente sórdida. D. H. Lawrence escreveu de maneira encantadora sobre a primeira; Jean Genet, com uma força terrível e detalhadamente, sobre a segunda. A sexualidade do Éden e a sexualidade do esgoto — ambas têm o poder de levar o indivíduo além dos limites de seu eu insulado. Mas a segunda (como tristemente se deduz) leva aqueles que com ela pactuam ao mais baixo nível de subumanidade, desperta a consciência e deixa uma lembrança mais total de alienação do que a primeira. Eis aí, para todos aqueles que sentem necessidade de escapar de sua identidade aprisionada, a constante atração da libertinagem e de equivalentes exóticos da libertinagem, tais como os descritos no decorrer desta narrativa.

Na maioria das sociedades civilizadas, a opinião pública condena a depravação e o vício das drogas como prejudicais do ponto de vista ético. E à reprovação moral são acrescentados o desencorajamento fiscal e a repressão legal. O álcool é altamente taxado, a venda de narcóticos é proibida em toda parte, e certas práticas sexuais são consideradas criminosas. Mas quando passamos do vício dos entorpecentes e da sexualidade primária ao terceiro meio de obter a auto- transcendência descendente, encontramos da parte dos moralistas e legisladores uma atitude bastante indulgente, isso parece ainda mais espantoso quando se pensa que o delírio das multidões, como podemos denominar, é muito mais perigoso à ordem social, constitui uma ameaça muito mais dramática a essa tênue crosta de decência, razão e tolerância mútua que constitui uma civilização, do que a bebida ou a libertinagem. Na verdade, um hábito generalizado e já longamente arraigado de entrega total ao prazer pode resultar, como argumentou J. H. Unwin (D. Unwin, Sex and culture – Londres, 1934), na redução do nível de energia de uma sociedade inteira, tornando-a, por conseguinte, incapaz de atingir ou manter um alto nível de civilização. Do mesmo modo, o vício das drogas, quando suficientemente difundido, pode diminuir a eficiência econômica, política e militar da sociedade em que prevalece. Nos séculos XVIII e XIX, o álcool era a arma secreta dos traficantes de escravos europeus; a heroína, a dos militares japoneses no século XX. Embriagado, o negro era uma presa fácil. Quanto ao chinês viciado, podia-se estar seguro de que não causaria problemas ao conquistador. Mas esses casos são excepcionais. Deixada a seu arbítrio, uma sociedade geralmente tende a chegar a um modus vivendi com seu veneno favorito. O entorpecente é um parasita no organismo político, mas um parasita que seu hospedeiro (falando num sentido metafórico) tem forças suficientes e bastante bom senso para manter sob controle. E o mesmo se aplica à sexualidade. Nenhuma sociedade que baseasse suas práticas sexuais nas teorias do marquês de Sade poderia sobreviver, e, na verdade, nenhuma sociedade nem sequer se aproximou de tais práticas. Até mesmo os mais liberais entre os paraísos polinésios possuem regras e regulamentos, imperativos categóricos e mandamentos. Contra os excessos da sexualidade, assim como do vício das drogas, as sociedades parecem saber se proteger com bastante sucesso. As defesas contra os delírios das multidões e suas conseqüências desastrosas parecem ser, na maioria das vezes, muito menos apropriadas. Os moralistas profissionais que investem contra a embriaguez são estranhamente reticentes quanto ao igualmente repugnante vício da intoxicação das massas — a autotranscendência descendente no sentido da subumanidade, provocada pelo processo de se reunir em multidão.

“Onde dois ou três se reúnem em Meu nome, lá estou entre eles.” Entre duzentos ou trezentos, a presença de Deus se torna mais problemática. E quando os números atingem o milhar, ou vários milhares, a probabilidade de Deus estar lá, na consciência de cada indivíduo, declina até o ponto de se extinguir por completo. Porque tal é a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão é automaticamente auto-excitante): onde dois ou três mil se reúnem, há ausência não somente da divindade, mas mesmo de traços mínimos de humanidade. O fato de ser um na multidão liberta o homem o da consciência de ser um eu insulado, e o leva a um estágio intrapessoal, onde não existe responsabilidade, bem, ou mal, necessidade de pensamento, julgamento ou discernimento — somente um sentimento vago de estar junto, o sentimento de uma excitação partilhada, de uma alienação coletiva. E a alienação é mais prolongada e menos cansativa do que a provocada pela libertinagem: a manhã seguinte, menos deprimente do que a que se segue à auto-intoxicação pelo álcool ou morfina. Além disso, o delírio da multidão pode ser experimentado não somente sem sentimento de culpa, mas até, na maioria dos casos, com o positivo esplendor da consciência limpa. Porque, longe de condenar a autotranscendência descendente, provocada pela intoxicação em meio à massa, os líderes da Igreja e do Estado encorajam-na ativamente, sempre que pode servir a seus próprios fins. Individualmente, assim como nos grupos coordenados e com um objetivo comum que constituem a sociedade, homens e mulheres demonstram certa capacidade para o pensamento racional e para o livre-arbítrio, à luz dos princípios morais. Reunidos em meio à multidão, os mesmos homens e mulheres comportam-se como se não possuíssem razão nem livre-arbítrio. A intoxicação provocada pela multidão os reduz a uma condição infrapessoal e de irresponsabilidade anti-social. Drogados pelo veneno misterioso que toda multidão excitada segrega, caem em um estado de alta sugestionabilidade, semelhante ao que se segue a uma injeção de sódio amital, ou à indução, seja por que meio for, de um leve transe hipnótico. Enquanto estiverem nesse estado, acreditarão em qualquer bobagem que lhes gritarem, e responderão a qualquer ordem ou comando que lhes derem, por mais criminoso, louco ou sem sentido que seja. Para os indivíduos sob a influência do veneno segregado pelas massas, “tudo o que eu repetir três vezes é verdade” (Referência à conhecida sentença encontrada no livro A caça ao “snark”, do escritor inglês Lewis Carroll) — e o que eu disser trezentas vezes é a revelação, é a palavra de Deus por inspiração direta. Por essa razão, os homens que detêm a autoridade — os padres e os dirigentes do povo — nunca proclamaram virtualmente a imoralidade desse tipo de autotranscendência descendente. Na verdade, os delírios de massas provocados pelos membros da oposição, em nome de princípios heréticos, foram sempre denunciados pelos que estão no poder. Mas aqueles provocados por agentes governamentais, em nome da ortodoxia, são um assunto totalmente diferente. Todas as vezes em que pode servir aos interesses dos homens que controlam o Estado e a Igreja, a autotranscendência horizontal pela intoxicação das massas é considerada legítima e altamente desejável. Romarias e reuniões políticas, manifestações religiosas e desfiles patrióticos — essas coisas são eticamente corretas se se tratarem de “nossas” romarias, “nossas” reuniões, manifestações ou desfiles. O fato de a maioria dos que tomam parte nessas atividades ficarem temporariamente desumanizados pelo veneno coletivo, é de pouca importância, comparado ao fato de que sua desumanização pode ser usada para consolidar os poderes políticos e religiosos dominantes.

Quando o delírio das massas é explorado em benefício do governo e das igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem seus governados pela autotranscendência descendente, para em primeiro lugar distraí-los, e em seguida colocá-los num estado de não-individualidade altamente sugestionável. Cerimônias políticas e religiosas são bem recebidas pelas massas, como oportunidades de se embriagarem com o veneno das multidões, e por seus governantes, como ocasiões para implantar idéias em mentes que cessaram momentaneamente de ter a capacidade de raciocínio ou de livre- arbítrio.

O sintoma derradeiro de intoxicação das massas é uma violência maníaca. Exemplos de delírios de multidões que culminam em destruição gratuita, em brutal automutilação, em selvageria fratricida sem objetivo e contra os interesses elementares de todos os envolvidos, são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos, e — um pouco menos freqüentemente, mas com desoladora regularidade — nas histórias mesmo das mais adiantadas civilizações. A não ser quando desejam liquidar uma minoria impopular, os representantes do Estado e da Igreja são prudentes em não criar um furor que possa escapar de seu controle. Tais escrúpulos não constrangem o líder revolucionário, que odeia o status quo e só tem um desejo: criar um caos sobre o qual possa — quando tomar o poder — impor um novo tipo de ordem. Quando o revolucionário explora essa ânsia de autotranscendência descendente, vai até o mais frenético e demoníaco limite. Para homens e mulheres desgostosos de serem seres insulados, e cansados das responsabilidades que retêm como membros de um grupo humano com determinados objetivos, ele oferece oportunidades animadoras de “livrar-se disso tudo” em desfiles, manifestações e reuniões públicas. Os departamentos de organizações políticas são grupos objetivos. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que ela segrega despersonaliza seus membros, a ponto de começar a agir com uma violência selvagem, da qual em seu estado normal seriam inteiramente incapazes. O revolucionário encoraja seus seguidores a manifestar esse derradeiro e pior sintoma de intoxicação das massas, e então passa a dirigir sua fúria contra os inimigos, os que detêm o poder econômico, político e religioso.

Nos últimos quarenta anos, as técnicas utilizadas na exploração do desejo do homem em relação a essa mais perigosa forma de autotranscendência descendente alcançaram um extremo de perfeição jamais visto na história. Para começar, existem mais pessoas por quilômetro quadrado do que em qualquer outra época, e os meios de transporte para arrebanhar grandes grupos e, percorrendo enormes distâncias, concentrá-los em um único edifício ou condomínio, são muito mais eficientes que no passado. Enquanto isso, mecanismos novos e outrora inimagináveis para animar as multidões foram inventados. Existe o rádio, que ampliou enormemente o alcance da voz estridente do demagogo. Há o alto-falante, que amplifica e repete incessantemente a música violenta que expressa os ódios de classe e o nacionalismo agressivo. A câmera (da qual já se disse ingenuamente que “não pode mentir”) e seus frutos: o cinema e a televisão. Os três tornaram a concretização de fantasias tendenciosas absurdamente fácil. E há finalmente a maior de nossas invenções sociais, a educação gratuita e compulsória. Todos sabem ler, e estão portanto à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, que possuem as fábricas de papel, de máquinas de linotipo e de prensas rotativas. Junte uma turba de homens e mulheres previamente condicionados pela leitura diária de jornais; submeta-os a uma orquestra com amplificadores, luzes brilhantes e o discurso de um demagogo que (como acontece com todos os demagogos) é ao mesmo tempo explorador e vítima da intoxicação das massas, e em pouco tempo você pode reduzi-los a um estado de subumanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos seres humanos em tolos, maníacos e criminosos.

Na Rússia comunista, na Itália fascista e na Alemanha nazista, os exploradores da tendência fatal da humanidade para a intoxicação das massas têm seguido o mesmo método. Quando em oposição revolucionária, encorajaram a multidão sob sua influência a tornar-se destrutivamente violenta. Mais tarde, quando tomam o poder, só permitem que a intoxicação das massas se expanda livremente em relação a estrangeiros e bodes expiatórios. Tendo alcançado um status quo que desejavam manter, passam então a controlar a descida até a subumanidade, conservando-a no ponto ideal aquém da agitação. Para esses neoconservadores, a intoxicação das massas tornou-se de valor inestimável como meio de aumentar a sugestionabilidade dos indivíduos, e assim torná-los mais dóceis às manifestações de autoritarismo. O melhor antídoto conhecido contra o pensamento livre é estar em uma multidão. Daí a repulsa total dos ditadores à “psicologia pura” e à vida particular. “Intelectuais do mundo, uni-vos! Não tendes nada a perder, senão vossos cérebros.”

Drogas, sexualidade primária e intoxicação das massas — são estes os três caminhos mais conhecidos para a autotranscendência descendente. Existem muitos outros, não tão trilhados quanto essas estradas em declive, mas que conduzem ao mesmo objetivo de degradação pessoal. Basta pensar, por exemplo, no movimento rítmico. Nas religiões primitivas, o movimento rítmico prolongado é freqüentemente usado com a finalidade de provocar um estado de êxtase impessoal e subumano. A mesma técnica para alcançar o mesmo fim tem sido utilizada por muitos povos civilizados — pelos gregos, por exemplo, pelos hindus, por muitas seitas dervixes no mundo islâmico, e por seitas cristãs tais como as dos shakers e dos holy rollers. Em todos esses casos, o movimento rítmico, prolongado e repetitivo, é uma forma de ritual praticada deliberadamente, e que visa uma autotranscendência descendente. A história também registra muitas explosões esporádicas de danças agitadas, involuntárias e incontroláveis, balanços e meneios de cabeça. Essas epidemias que se denominam ora tarantismo, ora dança de São Vito, têm ocorrido geralmente em tempos difíceis que sucedem a guerras, pestes e fome, e são mais comuns onde a malária é endêmica. O objetivo inconsciente dos homens e mulheres que se entregam a essas loucuras coletivas é o mesmo que perseguem os membros das seitas que têm a dança como rito religioso — ou seja, o de fugir do eu isolado por meio de um estado de irresponsabilidade, sem culpas passadas ou anseios futuros, mas apenas o presente, com a feliz sensação de ser outro.

Intimamente associado com o rito produtor de êxtase do movimento rítmico, encontra-se o rito produtor do som ritmado. A música é tão grandiosa quanto a natureza humana e tem alguma coisa a dizer ao homem em todos os aspectos de seu ser, do sentimental ao intelectual, do visceral ao espiritual. Em uma de suas diversas modalidades, a música é uma droga poderosa, estimulante ou narcotizante, mas os dois aspectos se excluem mutuamente. Nenhum homem, por mais civilizado que seja, pode ouvir durante muito tempo tambores africanos, ou cantos indianos, ou hinos patrióticos galeses, e manter intacta sua personalidade crítica e consciente. Seria interessante juntar um grupo dos mais eminentes filósofos das melhores universidades, trancá-los com dervixes marroquinos ou voduístas haitianos num quarto aquecido e medir, com um cronômetro, a força de sua resistência psicológica aos feitos do som ritmado. Os positivistas lógicos resistiriam mais que os idealistas subjetivos? Provariam os marxistas serem mais fortes que os tomistas ou vedantistas? Que fascinante e fértil campo de experiência! Por enquanto, o que podemos prever é que, se expostos o suficiente aos ritmos monótonos e aos cantos, cada um de nossos filósofos terminaria por dar pulos e gritos, juntamente com os selvagens.

Os movimentos rítmicos e o som ritmado são geralmente por assim dizer, acrescentados à intoxicação das massas. Mas existem também caminhos privados que podem ser tomados pelo viajante solitário, que não gosta de multidões ou não tem fé suficiente nos princípios, instituições e pessoas em torno dos quais as multidões se reúnem. Um desses caminhos particulares é o do mantram, que Cristo denominou “vã repetição”. Nos cultos religiosos públicos, a “vã repetição” é quase sempre associada ao som ritmado. As litanias e similares são cantadas, ou pelo menos entoadas. E com música que obtêm seus efeitos semi-hipnóticos. A “vã repetição”, quando praticada na privacidade, age sobre a mente não devido à sua associação com o som rítmico (pois funciona mesmo quando as palavras são apenas imaginadas), mas por meio do poder de concentração e da memória. A repetição constante da mesma palavra ou frase leva freqüentemente a um estado de percepção luminosa, ou mesmo a um profundo transe. Uma vez induzido, o transe pode ser desfrutado em si mesmo, com uma deliciosa sensação de infrapessoal “não-eu”, ou então utilizado deliberadamente com o objetivo de melhorar a conduta pessoal pela auto-sugestão, e preparar o caminho para a realização máxima de autotranscendência ascendente. Da segunda possibilidade, falaremos mais tarde em outro trecho. No momento, estamos preocupados com a “vã repetição” como um caminho descendente que leva à completa alienação intrapessoal.

Devemos agora considerar um método estritamente fisiológico para fugir ao eu insulado: o caminho da penitência corporal. A violência destrutiva, sintoma final da intoxicação das massas, não é invariavelmente dirigida para o exterior. A história da religião está repleta de casos sinistros de autoflagelações, automutilações, autocastrações e até suicídios coletivos. Esses atos são conseqüência do delírio da multidão, e são praticados em estados de exaltação. Muito diferente é a penitência corporal praticada privadamente, e de cabeça fria. Nesse caso, o ato de flagelação deve-se a uma determinação da vontade pessoal; mas sua conseqüência (ao menos em alguns casos) é uma transformação temporária da personalidade insulada em alguma coisa diferente. Essa outra coisa é a consciência em si mesma, intensa demais por ser única, da dor física. A pessoa que se autoflagela se identifica com sua dor, e ao se tornar apenas a percepção de seu corpo sofredor livra-se daquele sentimento de culpa ligado ao passado, e da frustração daquela ansiedade obsessiva em relação ao futuro, que constituem uma grande parte do ego neurótico. Houve uma fuga de individualidade, uma passagem descendente para um estado de martírio puramente fisiológico. Mas a autoflagelação não precisa permanecer necessariamente nessa região de consciência. Como o homem que faz uso da “vã repetição” para superar-se a si mesmo, há uma possibilidade de se fazer uso da alienação temporária da individualidade como uma ponte, digamos, que leva ascensionalmente para a vida do espírito.

Isso levanta uma questão muito importante. Até que ponto, e em que circunstâncias, é possível a um homem usar o caminho descendente para atingir a autotranscendência espiritual? A primeira vista, tudo parece indicar que o caminho para baixo jamais poderia ser o caminho para cima. Mas, no domínio da existência, os problemas não são tão simples como o são no nosso bonito e bem-organizado mundo das palavras. Na vida real, um movimento descendente pode algumas vezes se tornar o início de um ascendente. Quando a concha do ego é partida e começa a surgir uma consciência subliminar e fisiológica do “não-eu” sob nossa personalidade aparente, acontece algumas vezes que captamos um lampejo, rápido mas apocalíptico, daquele “não-eu” (No original, “otherness”, “alteridade”) que é o Fundamento de todo o nosso ser. Enquanto permanecemos isolados em nossa identidade, não temos consciência dos diversos não-eus aos quais estamos ligados — o não-eu orgânico, o não-eu subconsciente, o não-eu coletivo do meio psíquico, no qual nossos pensamentos e sentimentos existem e o imanente e transcendente não-eu do Espírito. Qual que fuga, mesmo por um caminho descendente, para fora da individualidade insulada, torna possível uma percepção ao menos momentânea do não-eu em cada nível, que inclui o mais elevado. William James, em seu Varieties of religious experience, dá exemplos de “revelações anestésicas” que se seguem a inalações de gás hilariante. Teofanias semelhantes são algumas vezes experimentadas por alcoólatras, e existem talvez momentos, durante a intoxicação produzida por quase qualquer tipo de droga, em que a percepção de um não-eu, superior ao eu em processo de desintegração, torna-se possível por um breve lapso de tempo. Mas esses momentâneos surtos de revelação custam muito caro. Para os viciados em drogas, o momento de percepção espiritual (se surge real mente cede bem cedo lugar a um estupor subumano, uma exaltação ou uma alucinação, seguidas por terríveis ressacas, e a longo prazo, por um enfraquecimento permanente e fatal da saúde física e mental. Uma vez ou outra, uma única “revelação anestésica” pode agir, como qualquer outra manifestação da divindade, no sentido de estimular quem a experimenta a um esforço de autotransformação e autotranscendência ascendente. Mas, pelo fato de tal coisa poder eventualmente acontecer, não se justifica o emprego de métodos químicos de autotranscendência. Esse é um caminho descendente, e a maioria dos que o tomam atingirá um estado de degradação, onde períodos de êxtase subumano serão alternados por períodos de individualidade consciente tão miserável, que qualquer fuga, mesmo para o suicídio lento do vício das drogas, será preferível.

O que é verdade quanto às drogas, também o é, mutatis mutandis, quanto à sexualidade primária. O caminho leva para baixo, mas durante o percurso pode haver teofanias ocasionais. Os Deuses das Trevas, como os chamava Lawrence, podem mudar suas características e tornar-se reluzentes. Na Índia existe uma ioga tântrica, baseada em complicadas técnicas psicofisiológicas, cujo propósito é transformar a autotranscendência descendente da sexualidade primária em autotranscendência ascendente. No Ocidente, o equivalente que mais se aproximou dessas práticas tântricas foi a disciplina sexual imaginada por John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Comunidade de Oneida. Em Oneida, a sexualidade primária era não apenas civilizada com sucesso; era também tornada compatível e subordinada a uma forma de protestantismo, sinceramente pregada e firmemente praticada.

A intoxicação das massas desintegra o ego muito mais profundamente que a sexualidade primária. Suas exaltações, suas loucuras, sua sugestionabilidade elevada ao mais alto grau, só podem ser comparadas às intoxicações provocadas por drogas como o álcool, o haxixe e a heroína. Mas, mesmo a um componente de uma multidão excitada, pode ocorrer (em um estágio ainda inicial de autotranscendência descendente) uma revelação autêntica do não-eu que está acima da individualidade. Eis a razão por que algumas vezes podem ser benéficas as mais coribânticas reuniões visando despertar o fervor religioso (Ou seja, das mais violentas e exaltadas reuniões organizadas com esse fim.). Algum bem, tanto quanto um grande mal, podem também resultar do fato de que as pessoas, em meio à multidão, tendem a tornar-se excessivamente sugestionáveis. Enquanto se encontram nesse estado, são sujeitas a estímulos que continuam funcionando como ordens dadas a hipnotizados, mesmo depois que voltam a seu estado normal. Assim como o demagogo, o pregador e o ritualista desintegram o ego de seus ouvintes, reunindo-os em grupo e deixando-os sonados por meio do excesso de vã repetição e do som rítmico Então, ao contrário do demagogo, fazem sugestões, algumas das quais são autenticamente cristãs. Isso, se funciona, resulta em uma reintegração das individualidades destruídas num nível mais elevado. Pode haver também reintegrações de personalidade sob a influência de ordens pós-hipnóticas, transmitidas por políticos demagogos. Mas essas ordens são todas incitamento ao ódio, por um lado, e obediência cega e ilusão compensatória, por outro. Iniciada com uma dose maciça de veneno em meio a multidões, confirmada e orientada pela retórica de um maníaco, ao mesmo tempo um maquiavélico explorador da fraqueza dos outros homens, a catequização política resulta na criação de uma nova personalidade, pior que a antiga e muito mais perigosa, porque inteiramente devotada a um partido cujo objetivo primordial é liquidar seus oponentes.

Fiz uma distinção entre demagogos e religiosos, baseando-me no fato de os últimos poderem algumas vezes praticar o bem, enquanto os primeiros podem apenas, pela própria natureza das coisas, fazer o mal. Mas não imaginemos que os exploradores religiosos da intoxicação das massas estão inteiramente inocentes. Pelo contrário, foram os responsáveis, no passado, por males quase tão imensuráveis quanto os causados às suas vítimas (junto com as vítimas daquelas vítimas) pelos demagogos revolucionários de nossos dias. No decorrer das últimas seis ou sete gerações, o poder das organizações religiosas para fazer o mal diminuiu consideravelmente em todo o mundo ocidental. Isso se deve primeiramente ao incrível progresso tecnológico e à conseqüente procura pelas massas de ilusões compensatórias que parecem mais positivistas que metafísicas. Os demagogos oferecem tais ilusões pseudo-positivistas, enquanto as Igrejas não o fazem. Ao mesmo tempo em que a sedução das Igrejas declina, diminuem também sua influência, sua riqueza, seu poder político e, junto com tudo isso, sua capacidade para praticar o mal numa escala maior. As circunstâncias libertaram o sacerdote de certas tentações a que seus antecessores quase sempre não resistiam, em séculos passados. Fariam bem em afastar-se voluntariamente de tais tentações, que ainda persistem. Entre elas, destaca-se a tentação de obter poder pelo estímulo ao insaciável desejo humano de autotranscendência descendente. Produzir deliberadamente a intoxicação das massas — mesmo que em nome da religião e supostamente “para o bem” do intoxicado — não se justifica moralmente.

No que se refere à autotranscendência horizontal, pouco precisa ser dito — não porque o fenômeno não seja de importância (longe disso), mas por ser por demais óbvio para exigir análise, e por ocorrer com tanta freqüência que se torna difícil defini-lo em poucas palavras.

Para escapar dos horrores do eu insulado, a maior parte dos homens e mulheres escolhem, na maioria das vezes, não subir nem descer, mas escapar para os lados. Eles se identificam com uma causa maior que seus próprios interesses imediatos, mas que não os faz cair na degradação, e, quando é mais elevada, sem ultrapassar os níveis dos valores sociais correntes. Essa autotranscendência horizontal, ou quase horizontal, pode estar em qualquer coisa trivial como um hobby, ou valiosa como um casamento por amor. Pode ser produzida pela auto-identificação com qualquer atividade humana, desde gerir um negócio até fazer pesquisas sobre física nuclear, compor música ou colecionar selos, fazer campanhas políticas para educar crianças ou estudar os hábitos matinais dos pássaros. A autotranscendência horizontal é de grande importância. Sem ela, não haveria arte, ciência, lei, filosofia, nem, na verdade, civilização. E não haveria também guerra, odium theologicum ou ideologicum, nem constantes intolerâncias, nem perseguições. Esses grandes bens e imensos males são decorrentes da capacidade do homem para uma total e constante auto-identificação com uma idéia, um sentimento, uma causa. Como poderemos ter o bem sem o mal, uma civilização avançada sem o bombardeio de saturação, ou o extermínio de hereges políticos ou religiosos? A resposta é que não podemos possuir isso enquanto nossa autotranscendência permanecer apenas horizontal. Quando nos identificamos com uma idéia ou uma causa, estamos de fato adorando uma coisa comum, incompleta e provinciana — uma coisa que, embora nobre, é contudo demasiadamente humana. “O patriotismo”, como um grande patriota concluiu no dia de sua execução pelos inimigos de seu país, “não é suficiente”. Nem o socialismo, nem o comunismo, nem o capitalismo; nem a arte, a ciência, a ordem pública, nenhuma religião ou Igreja. Tudo isso é indispensável, mas nada disso é bastante. A civilização exige do indivíduo uma auto-identificação devotada às mais elevadas causas da humanidade. Mas, se essa auto-identificação com o que é humano não for acompanhada por um esforço consciente e congruente, visando a atingir a autotranscendência ascendente no sentido da vida universal do Espírito, os bens alcançados estarão sempre misturados a males que os contrabalançam. “Fazemos”, escreveu Pascal, “da verdade um ídolo; porque a verdade sem caridade não é Deus, mas Sua imagem e ídolo, a quem não devemos amar nem venerar.” E não é apenas errado adorar um ídolo; é também inconveniente. A adoração da verdade, separada do amor cristão — uma auto-identificação com a ciência não acompanhada da identificação com o Fundamento de todo o ser — resulta no tipo de situação com que, presentemente, nos defrontamos. Todo ídolo, por mais sublime que seja, transforma-se, com o tempo, num Moloch, faminto de sacrifício humano.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Sobre a Arte de Estudar - Olavo de Carvalho (fragmentos)

No seu livro Como se Faz uma Tese, Umberto Eco enuncia uma série de regras para a organização dos estudos tendo em vista que o aluno tenha por objetivo tornar-se um intelectual de profissão no quadro dos estudos humanísticos da universidade européia e mais particularmente italiana. O terreno escolhido delimita claramente o objetivo, os meios, o cronograma e as formas de controle. É claro que uma parte das técnicas sugeridas pelo autor se aplica com utilidade em outros contextos, podendo servir a um estudante universitário brasileiro ou mesmo a um pesquisador independente fora do quadro universitário; também é claro que grande parte das sugestões indicadas se transforma, neste último caso, em sobrecarga inútil, e que o pesquisador independente encontraria outros problemas, para os quais o livro dirigido ao universitário italiano não oferece solução.
Um outro livro muito conhecido é A Arte de Ler, de Mortimer J. Adler. Ele se dirige essencialmente ao homem comum, ao comerciante, ao trabalhador, ao pai de família, dotado de boa formação ginasial, de um conhecimento suficiente da língua inglesa, mas profissionalmente alheio à ocupação intelectual. Suas técnicas destinam-se a fornecer a este homem os meios de posicionar-se no quadro das idéias e valores cujo intercâmbio e conflito constituem a trama básica da cultura Ocidental, e fazê-lo num prazo razoavelmente curto, quatro ou cinco anos. O ideal é fazer do cidadão comum um observador consciente desse teatro das idéias, não propriamente um participante ativo.
Ambos esses livros pressupõem um quadro social estável e perfeitamente definido, no qual a função intelectual ocupa um lugar bastante claro. Se as universidades italianas estivessem em fase de experiência e mudassem de programa e de exigências curriculares todo ano, ou se a sociedade americana estivesse num estado de crise permanente que dissolvesse o quadro de estabilidade que garante os lazeres e o equilíbrio psicológico da classe média, nem Umberto Eco poderia descrever com tanta facilidade os caminhos que levam ao sucesso acadêmico, nem Adler conseguiria com tanta desenvoltura comunicar ao cidadão americano uma imagem de conjunto da cultura do Ocidente.
Os quadros sociais críticos e turvos embaralham os dados necessários à compreensão do terreno, à delimitação da nossa posição nele e à concepção do plano. No quadro brasileiro, a descrição dos meios e etapas para uma formação intelectual não podem de maneira alguma resumir-se nem nas receitas de sucesso acadêmico de Umberto Eco, nem no otimismo humanístico da idéia de ²cultura geral ( pressuposta por Adler. O problema, para nós, é enormemente mais complexo. Temos de levar em conta alguns fatos que intimidariam o mais arrogante dos acadêmicos europeus e fariam desanimar o mais confiante dos americanos.
Dentre esses fatos, o mais desanimador é a enorme complexidade da gramática portuguêsa e o estado presente da nossa língua, que, em parte pelas deficiências do ensino, em parte pelo impacto massacrante da linguagem padronizada das comunicações de massa, em parte pela penetração dissolvente de um número excessivo de gírias de curta duração ( provenientes sobretudo da disseminação de estados psicóticos induzidos pela experiência das drogas ), em parte, afinal, pela cumplicidade demagógica dos próprios escritores, ansiosos de popularizar( à força sua linguagem, chegou ao ponto de perder toda eficiência enquanto veículo de comunicação de idéias e de tornar-se apenas um cacarejo vagamente impressionista.
Como já apontamos numa aula anterior, a maior parte das leituras cultas da nossa juventude é constituída de traduções, e a tradução, no Brasil, é o quartel-general da inépcia. A regra áurea do menor esforço produz adaptações forçadas da nossa língua às sintaxes estrangeiras, implantando nos nossos hábitos subconscientes toda uma esquematologia artificial e despropositada, que vai aos poucos entravando a nossa agilidade mental. Isso é ainda mais grave porque a maior parte das traduções é feita do inglês, e a língua inglesa tem, por um lado, uma estrutura sintática muito simples e, por outro, um vocabulário imenso e uma potencialidade infindável para a criação de compostos, de expressões idiomáticas e de adaptações de palavras estrangeiras ( sendo ela mesma o resultado da fusão de duas línguas completamente diferentes entre si e não, como a nossa, uma herança mais ou menos direta do latim ). A nossa lígua, ao contrário, tende, como o latim, a uma sintaxe mais puramente geométrica e a uma severidade maior perante a assimilação de termos estrangeiros. Se o inglês tende às expressões abreviadas e sintéticas, sendo, por isto, a língua por excelência da poesia lírica, somente de longe rivalizada pelo alemão, a nossa, ao contrário, é uma língua de distinções sutilíssimas, onde o deslocamento de uma vírgula produz as maiores dubiedades, e que, por isto, requer construções mais detalhadas e propicia um extremo rigor de argumentação dialética; é, como o latim, uma língua de juristas e teólogos, e daí que as nossas expressões líricas tendam frequentemente a refrear-se pela ironia, quando não podem disciplinar-se pelas rígidas leis da métrica clássica. Não é à toa que os nossos poetas mais eminentes — Drummond, Bandeira, Murillo Mendes, Mário Quintana — são todos sentimentais irônicos, e que os poetas puramente sentimentais e intimistas são geralmente de segunda ordem, ao contrário do que se dá na literatura inglesa e alemã.
Esses fatos são por demais evidentes, e a ampla inconsciência deles nos nossos meios letrados tem produzido os mais desastrosos efeitos, agravados pela nossa condição de cultura imitativa.
Em qualquer tradução, é fácil ver que, onde o inglês escreve duas linhas, o brasileiro ou português tem de escrever três ou quatro, para prevenir as dubiedades. A tentativa de copiar o sintetismo inglês produz apenas uma aparência enganosa de simplicidade, que faz o leitor, a longo prazo, acostumar-se a uma taxa anormal de dubiedades entrevistas e não esclarecidas. Isto acaba por formar no subconsciente do leitor brasileiro uma massa de obscuridades, cuja presença estorvante, no fim, lhe parece tão natural quanto a dificuldade de respirar se torna um hábito natural para o asmático de nascença. Ele se acostumou a entender pouco, e não lhe ocorre que poderia entender melhor.
Na mesma medida em que o português, como o latim, é uma língua de precisão, uma língua de disputas dialéticas e jurídicas, nesta mesma medida é uma língua onde o descuido na construção da frase produz inevitavelmente a dubiedade, da qual se escapa em inglês pelo fato de que a simplicidade de sintaxe, e o grande número de palavras curtas, atraem a atenção do leitor mais para a forma da frase como um todo do que para as distintas relações entre termos isolados de uma mesma frase, exatamente ao contrário do que acontece no português. Daí o famoso argumento do gramático Napoleão Mendes de Almeida, de que não se pode escrever bem em português sem haver estudado latim, que habitua a mente aos complexos problemas das nuances sugeridas pelos jogos de construção das frases.
Num momento em que o inglês se torna a língua predominante de cultura, substituindo primeiro o latim e depois o francês, as desvantagens para a língua portuguêsa são evidentes. As dificuldades de comunicação se avolumam, e a massa de intelectuais de pequeno e médio porte passa a acreditar que se trata de uma deficiência congênita da própria língua portuguêsa, e não da dificuldade que eles mesmos têm de se adaptar ao gênio próprio dessa língua após terem aprendido a pensar em inglês, ao invés de latim ou grego. Assim, alguns deles, dentre os mais populares, chegam ao auge de pedantismo de não conseguirem se comunicar sem trazer entre parênteses os equivalentes ingleses dos pronomes retos e oblíquos que empregam. A moda foi lançada por Paulo Francis ( homem cujo talento só teria a ganhar com a exclusão de todo pedantismo anglo-saxônico).
O problema da língua é só o primeiro. Defrontamo-nos, em seguida, com o fato de que a nossa formação ginasial nem de longe se compara àquela fornecida pelas escolas americanas ou européias. Um menino francês não chega de modo algum à universidade sem ter-se demonstrado capaz de explicar-se com lógica e elegância segundo as regras estritas da composition française, isto é, sem ter adquirido o domínio de uma arte de estruturação das idéias e palavras que, no Brasil, bastaria para habilitá-lo a ser um jornalista de primeiro plano, bem acima dos recém-formados pelas faculdades de jornalismo. Nem chegará um menino italiano a escapar das garras do ensino secundário antes de haver enfrentado a métrica de Dante e Manzoni, Leopardi e Pascoli, ao passo que o nosso gosto literário é formado sob o parâmetro fixado por Joaquim Manuel de Macedo e Bernardo Guimarães, isto quando não resvala ao nível de Caetano Veloso, Pelé, Alziro Zarur, e quando a sem-vergonhice estabelecida não faz dos nossos jovens ginasianos o pretexto e veículo inocente para o escoamento forçado da produção abundante e abusiva do ²jovem escritor nacional²; neste caso, considerações de oportunismo profissional, de mistura com a patriotada de sempre, acabam primando sobre o dever de transmitir, aos jovens, valores universais que são o sustentáculo de toda cultura. Problemas desta ordem foram abundantemente descritos pelo heróico batalhador da cultura, Osman Lins. E os livros que ele escreveu sobre isto têm diretamente um valor prático para nós, pois cada um dos alunos aqui presentes padece interiormente das deficiências criadas pelo estado de coisas que ele descreve.
Um terceiro ponto com que nos defrontamos é o próprio caráter imitativo e farsesco da vida cultural num país satélite, onde a vida cultural depende, seja de uma fortuna hereditária que permita as viagens de estudo, a aquisição de livros estrangeiros e o contato com atmosferas culturais mais respiráveis, seja da inserção do candidato nas filas do puxa-saquismo oficial, na disputa das magras verbas de pesquisa, em toda uma árdua concorrência por migalhas, desgastando nessa miséria todo o idealismo da sua juventude. Resta a opção de, afastando-se do meio acadêmico, buscar abrigo no mundo dos espetáculos e das comunicações de massa, cuja recompensa financeira custa a imersão na atmosfera de leviandade, diz-que-diz e vida boêmia, que arrasa toda vocação intelectual já na primavera de uma carreira de estudos.
Finalmente, a constatação das dificuldades materiais gera no aspirante a esperança insensata de conseguir primeiro melhores condições sociais e econômicas, para depois, e somente então, iniciar seriamente uma vida de estudos. Ninguém, jamais, em toda a história cultural brasileira, alcançou a vitória por este caminho e, ao contrário, o número daqueles que a alcançaram pelo esforço de estudar desde a juventude, suportando com paciência e resignação a miséria material e social, inclui os maiores nomes das nossas letras e ciências, sendo antes os ricos de nascença uma exceção notável. Das camadas ricas nunca saiu nem Capistrano de Abreu nem Machado de Assis, nem Cruz e Souza nem Da Costa e Silva.
Finalmente, o empenho de industrialização a serviço do estrangeiro faz descer sobre a alma da nossa população um conjunto de falsas e aberrantes normas éticas, que, sob pretexto de adaptação social e de realismo, induz todos a pensarem que o ideal de um ²bom emprego( coincida com a segurança e a paz necessárias ao lazer intelectual; e os brasileiros ingênuos se esforçam para enquadrar-se nesse ideal, sufocando-se de sentimentos de culpa quando não conseguem atingi-lo, sem dar-se conta de que os agentes desse ideal — os portavozes do capitalismo — nem de longe se encarregam de gerar o número de empregos necessário à consecução do ideal proposto, e de que a prometida estabilidade é propositadamente acenada como bandeira no intuito de manter escrava uma população perpetuamente em busca daquilo que é reservado a poucos.
Ao encetarmos o planejamento de uma vida intelectual no Brasil, devemos levar em conta todos esses fatores, pois eles constituem a topografia do terreno onde se desenrolarão as nossas batalhas.
No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar, a vida a serviço do espírito requer a abdicação inicial de toda e qualquer esperança de encontrar qualquer apoio que seja na rede de instituições e costumes da sociedade vigente. No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar, uma vida a serviço do espírito requer que não se busque apoio em nenhuma outra parte a não ser no Espírito mesmo. A vida intelectual no Brasil, há de ter o caráter de um radicalismo extramundano e mesmo abertamente antimundano: mais do que em qualquer outro lugar, a vida intelectual aqui é um esforço de austeridade monástica. É preciso buscar apoio na confiança inabalável nos princípios e valores que em toda parte e sempre fundaram a validade e universalidade da inteligência humana, e trabalhar numa via de mão única que desce perpetuamente do Céu à Terra, sem nada pedir à Terra e sem nada extrair dela senão o mínimo absolutamente indispensável à sobrevivência material e ao prosseguimento do trabalho.

Desprezar ativamente o aplauso dos imbecis e o apoio dos falsos. Nada esperar senão o prêmio final e supremo dos esforços humanos, que é o de ter vivido na verdade e pela verdade. E não há outro paraíso senão este.

quinta-feira, 25 de março de 2010

A Arte de Escrever, Arthur Schopenhauer

Ler cansa. Cansa porque envolve esforço, tempo, concentração. Hoje, com todas as facilidades da vida moderna, muitos lêem somente quando são obrigados: na escola, para o vestibular, na faculdade, ou para se manter atualizado profissionalmente. Poucos são os que lêem por prazer. Menos ainda aqueles que escrevem por prazer. A maioria dos escritores "vivem da literatura e não para a literatura", segundo Schopenhauer. E raras vezes ambas atividades são exercidas pelo mesmo homem. Enquanto muitos gastam suas energias e recursos em festas, divertimentos, busca de prazeres fulgazes, A arte de escrever mostra como gastar e obter um retorno à altura, com a literatura.
De espírito eternamente provocador, Arthur Schopenhauer foi um filósofo que influenciou grandes nomes da atualidade, como Machado de Assim, Nietzsche, Freud, Wagner, Tolstói, Sartre e Thomas Mann, entre outros. E hoje ainda é considerado um dos principais pensadores de toda a história alemã. A arte de escrever é uma coletânea de cinco ensaios que Schopenhauer escreveu em seu livro Parerga e Paralipomena (Acessórios e Remanescentes) que contém ensaios sobre diversos temas. Os cinco escolhidos são os que falam da literatura: escrita, estilo, leitura, crítica e pensamento literário.

1. Sobre a erudição e os eruditos (Über Gelehrsamkeit und Gelehrte). O autor critica muito aos pretensos eruditos, dizendo que quem lê muito pensa pouco. Ele classifica como escritores distintos aqueles que vivem DA literatura dos que vivem PARA ela. Outro ponto importante é quando ele diz que "a maior parte de todo o saber humano, em cada um dos seus gêneros, existe apenas no papel, nos livros, nessa memória de papel da humanidade. Apenas uma pequena parte está realmente viva, a cada momento dado, em algumas cabeças" (pg. 29). As revistas literárias ao invés de separarem o joio do trigo, tem suas opiniões pagas e passam a indicar livros ruins para os leitores.

2. Pensar por si mesmo (Selfstdenken). A organização dos pensamentos é fundamental. E pensar com profundidade é possível somente sobre o que se conhece, e vice-versa. "Uma pessoa somente deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca" (pg. 42). Tanto a leitura excessiva quanto a experiência não substituem a arte de pensar. Pensar requer mais esforço que elas. O pensador deve ruminar suas próprias idéias para chegar à conclusões por si só e assim desenvolver o seu raciocínio sozinho.

3. Sobre a escrita e o estilo (Über Schriftstellerei und Stil). Há escritores - e livros - bons e ruins. O escritor é ruim quando escreve por dinheiro. Os livros mais recentes não são os melhores e "o público é tão simplório que prefere ler o novo a ler o que é bom" (pg. 70). Como a maioria dos livros é ruim, devemos desmerecer os ruins para valorizar os bons. O autor critica o anonimato, tanto na escrita quanto na crítica. O estilo revela o tipo de escritor que escreveu a obra. Se ele escreve mais palavras do que realmente precisa, ou é confuso e obscuro, só tenta parecer que sabe mais do que realmente sabe. Schopenhauer enumera a partir daí vários vícios que desmascaram os escritores ruins.

4. Sobre a leitura e os livros (Über Lesen und Bücher). "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental" (pg. 127). A maioria dos livros é escrita somente para vender, e tão importante quanto escolher o que ler, devemos escolher o que NÃO ler, pois a vida é curta, e o tempo e energia são limitados. Biografias não devem ser lidas em substituição às obras originais escritas. Somente pouco mais de uma dúzia de obras a cada século irão permanecer para a eternidade. "O reconhecimento pela posteridade costuma ser pago com a perda de aplauso por parte dos contemporâneos, e vice-versa" (pg. 138).

5. Sobre a linguagem e as palavras (Über Sprache und Worte). Este é o ensaio mais técnico, e define que as primeiras palavras a existirem foram as interjeções. Como disse Voltaire, o adjetivo é inimigo do substantivo. A língua vive um momento em que não se aperfeiçõa mais, somente fica cada vez pior e mais simples. Quem aprende mais de uma lingua aprende não só palavras novas, mas conceitos novos. Expande a sua maneira de pensar. Por isto que as traduções são imperfeitas, pois há palavras em uma língua com um conceito impossível de traduzir para outra língua. Schopenhauer estimula o estudo do grego, do latim e do alemão.

Depois de citar algumas passagens e pensamentos, posso concluir que é um livro que merece ser lido e relido. O autor provoca. Dá alfinetadas, e eu mesmo senti algumas. Mas ele defende bem os seus argumentos e provoca a reflexão no leitor. É um livro escrito para escritores, para leitores e para pensadores. Diferente de O Caminho das Pedras, de Ryoki Inoue, que nos ensina como escrever um best-seller, um livro escrito objetivamente para vender e você ganhar dinheiro, A arte de escrever mostra como escrever um livro para a humanidade, que mostre o potencial do escritor e faça as gerações posteriores usarem o livro ponto de partida à sua própria evolução.
( Jefferson Luis Maleski)


ARTHUR, Schopenhauer. A arte de escrever. Rio Grande do Sul: L&PM pocket, 2007

terça-feira, 23 de março de 2010

CIDADÃO 100 % NORTE-AMERICANO

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tomou doméstica na índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo: ou de seda; cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso de mocassins que foram inventados pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos e entra no banheiro, cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia, e lava-se com sabão, que foi inventado pelos antigos gauleses; faz a barba, que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do Antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira de tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no Antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra no pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é o inventado na Itália medieval, a colher vem de um original romano. Começa seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar seu leite são originários do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na índia. Depois das frutas e do café, vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou uma planta doméstica na Ásia Menor. Rega-os com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de urna espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia oriental, salgada e defumada por um pro­cesso desenvolvido no norte da Europa.Acabando de comer nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta original do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarros provenientes do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for um bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser 100% americano.

LINTON, Ralph. O homem: Uma introdução à antropologia. 3ed., São Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. Citado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p.106-108]

terça-feira, 16 de março de 2010

Iapôi Cineclube incentivando a cultura e despertando o senso crítico

Em Goiana - PE ocorre quinzenalmente aos domingos o Iapôi Cineclube, com o objetivo de provocar debates após a exibição de filmes.
Os filmes trazem temas de extrema importância para a formação cidadã e os debates têm o intuito de criar provocações para despertar o senso crítico e discutir certas problemáticas sociais.
O IAPÔI cineclube conta com o apoio do ponto de cultura Aláfia e do Movimente Cultural Silêncio Interrompido e é membro do CNC (Conselho Nacional de Cineclube), FEPEC (Federação Pernambucana de Cineclube).



Goiana - PE (Igreja Matriz, cartão postal da cidade)



Escola Ciranda de Letras onde ocorre quinzenalmente o Iapôi Cineclube



Painel para a divulgação do filme



Exibição do filme batismo de sangue no domingo 14/03



Expectadores


Debate após o filme

segunda-feira, 15 de março de 2010

A mísera briga irracional

Cotidianamente vemos no grande teatro da vida o espetáculo da imoralidade, do desrespeito, egocentrismo, arrogância, prepotência, etc. Os animais assim como o ser humano agem instintivamente para sobreviverem e os mais fortes se sobressaem em detrimento dos mais ‘’fracos’’, como previu Darwin. Já para Hobbes o instinto do homem é essencialmente mal, e para isso é necessário a existência do Estado, pois o homem é incapaz de viver em harmonia com seu próximo.
Não é difícil vermos hoje em dia uma verdadeira luta de titãs onde os homens brigam para conquistar não mais a presa e sim o mercado de trabalho. Esse trabalho escraviza psicologicamente as pessoas e as torna individualistas, pois não podemos enxergar o colega de trabalho como “o próximo”, mas sim como “o inimigo”.
Esta briga acaba ocasionando um duelo interno, onde os titãs privam-se de espiritualidade, boa alimentação, integração com a natureza, contato com as pessoas, boas horas de sono, etc.
Com o decorrer desta batalha interna as olheiras são inevitáveis, a obesidade se torna evidente e os livros de auto-ajuda servem para tentar “curar” as feridas causadas pelo desequilíbrio. Depois vem os remédios e as sessões com os psiquiatras e os vícios servem para aliviar as tensões, as dores, o stress e preencher o vazio que acabamos cavando com a pá do individualismo.
O apego material é algo evidente nestes titãs, a supervalorização pelo dinheiro, o luxo, pompa e toda sorte de supérfluos são os temas mais apetitosos dentro deste grupo e as ‘’fofocas’’ parecem causar um grande êxtase de orgulho.
Para a mulher do chefe dos correios seria insuportável a idéia de que a mulher do diretor dos correios tivesse um vestido melhor que o seu no dia do baile. E o corretor odiaria ouvir que o saldo bancário do juiz é maior que o seu. Os filhinhos tanto do corretor quanto da mulher do chefe dos correios duelam para somarem a maior quantia de presentes que já ganharam e sempre falam das qualidades de seus “brinquedinhos” tentando provar qualquer coisa que os torne “melhor”.
O objetivo do trabalho é tirar os subsídios necessários para nossa sobrevivência, o orgulho é sentimento para pessoas vis, o apego material é para aqueles que preenchem a vida com quinquilharias no lugar de sentimentos, e os arrogantes e prepotentes são os mais ignorantes. A humildade é a virtude dos nobres de alma, pois a nobreza materialista é mais suja que a lama. Leonardo da Vinci já dizia, Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente a cabeça para o Céu, enquanto que as cheias as baixam para a terra, sua mãe.

“Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro.
E vivem como se nunca fossem morrer...
...e morrem como se nunca tivessem vivido”
(Dalai Lama)

Por Nathaly Pereira e Gileat Paulino

sábado, 13 de março de 2010

Diante da Lei e a inacessibilidade à justiça

Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirigi-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro”. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada.
O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro com seus pedidos. Muitas vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que costumam fazer os grandes senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas sempre dizendo: “Eu só aceito para você não achar que deixou de fazer alguma coisa”. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei; Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Tornando-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está escurecendo em volta ou se apenas os olhos o enganam. Contudo, agora reconhece no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem. “O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é insaciável.” “Todos aspiram à lei”, diz o homem. “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”. (KAFKA, 2008, p. 214)
Uma breve tentativa de interpretação deste conto que está inserido no livro O processo de Kafka, nos faz notar como é difícil entrarmos na lei (alcançarmos a justiça). O homem do campo representa aquele que não tem conhecimento da lei, aquele que mora numa cidadezinha do interior e que vem para a grande cidade lutar pelo seu direito, representa aquelas pessoas que não sabem ler nem escrever e muito menos conhecem as leis do nosso país, mas os legisladores pátrios não querem saber disso: Art. 3º L.I.C.C. – Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
O porteiro é o representante do Estado, aquele que tem a permissão de deixar entrar na “lei” segundo seus critérios de admissão. E este porteiro nosso de cada dia, está explicito pela burocracia, indiferença dos servidores públicos, imoralidade administrativa, o clientelismo, patrimonialismo, ineficiência estatal etc.
Isso não é só um problema no Brasil, em muitos países subdesenvolvidos ocorre do mesmo modo, onde os “GRANDÕES” brigam pela parte mais gorda do leitão, enquanto a população fica comendo as migalhas. Pois é, as pessoas se acostumam com muito pouco, gostam de ser cômodas, de passar o domingo na frente da TV, enquanto certos agentes políticos estão agindo de má fé com o dinheiro público. O pior é que os veículos de informação tentam nos mostram o que está acontecendo no cenário político atual, mas os programas humorísticos nos fazem dar boas risadas, encenando as ações de corrupção dos políticos. Sendo assim presumimos que somos melhores que eles, pois não seriamos capazes de fazer tal feito. E conseguimos desligar a TV depois de umas boas gargalhadas e colocar a cabeça no travesseiro sem grande dificuldade como se nada tivesse acontecido. Para tentar melhorar esta situação o Sensibilismo incorporou o núcleo de direito e cidadania que irá esclarecer a população de seus direitos, por meio de palestras, debates, peças teatrais, contos etc. Os temas abordados conterão noções básicas de ciência política, teoria geral do direito e do estado, sociologia e filosofia política. Acreditamos que só teremos um futuro melhor quando tivermos uma população instruída, uma população que não baixa a cabeça diante das dificuldades e luta para "entrar na lei" e finalmente alcançar a JUSTIÇA.

De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto. (Rui Barbosa)


KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. 2. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
Por Gileat Paulino